25/03/2014

Do primeiro livro do autor

SOBRE DEUS,
SOBRE O MAGNO PROBLEMA DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Quando eu era pequenino e Tu existias não era entre nós muito grande a distância e mesmo a diferença, se exceptuarmos a de não fazeres nunca chichi na cama. Depois as coisas complicaram-se: foste ficando para trás, não cresceste; eu cresci, não tive outro remédio. A morte tomou posições. E quando a morte se instala...

*

Atravancaste, mais do que o razoável, muitas vidas. Não se trata de te criticar os excessos, cada um afirma-se ou apaga-se como pode. Mas pensando nas vidas (atravancadas...) de tanta gente – os doentes e os timoratos, mas também os ignorantes e os distraídos- facilmente se acaba perguntando por quê. Aqui para nós, não seria por que atravancando inchavas e inchando ganhavas existência?

*

A estranha leveza que dás aos que não acreditam em Ti só pode ser da ordem do sobrenatural. Quanto mais não acreditam, mais leves se sentem. Quanto mais Te ferem (pensam que Te ferem) mais voam.

*

Senhor Deus que não existes, porque não existes, contigo o jogo é sempre limpo e inocente.
Até quando?
Até quando a tua inexistência perdure, ou a nossa paciência se canse, ou alguém apareça a estragar a brincadeira.
Mas quem?

*

Distinguem alguns espertos os que confiam em Deus e os que confiam na inexistência de Deus. Estes seriam os não assumidos, os devotos envergonhados.
A esses pobres escolásticos, porque não merecem mais, diremos tão-só:
Assim como há existÊncias apagadas de que ninguém se apercebe, nem elas, assim há também inexistÊncias que dão muito que fazer.

*

Não conheço muitas provas da bondade divina. Mas não posso esquecer que até aos maus poetas Deus concede, aqui e ali, a graça de um bom verso. Prodigialidade? Mera distracção? Pura bondade.

*

Outra Oração

Senhor que tudo sabes e podes
e nada fazes e ainda bem
livrai-nos das prostitutas mais irresistíveis
e dos padres que tudo perdoam
e dos poetas que têm missão a cumprir
mas principalmente livra os outros
livra todos os outros
dos inúteis sonhadores pretensiosos
inveterados bêbados como Tu e eu

Rui Caeiro

In Sobre deus, sobre o magno problema da existência de deus, Edição do Autor, Lisboa, Dezembro de 1988.

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